No final da década de 2010, muitos laboratórios médicos perceberam um aumento expressivo no caso de diagnósticos de hipotireoidismo, um funcionamento anormal da tireoide que pode levar à fadiga, ao aumento de peso corporal, ao ressecamento da pele e até mesmo à depressão.
Muitos pacientes, aparentemente saudáveis ou apenas em acompanhamento, apresentaram resultados que indicavam que suas glândulas estavam sendo estimuladas, mas produziam hormônios abaixo da quantidade adequada.
Um médico, intrigado com o resultado positivo para hipotireoidismo de uma paciente, passou a investigar o seu caso com mais cuidado. Ele interrogou a mulher e, à primeira vista, tudo parecia normal, a mesma medicação de sempre tomada com regularidade. Apenas um detalhe: suas unhas e cabelos estavam frágeis e ressecados e essa paciente havia consumido um suplemento alimentar à base de vitaminas com grande divulgação publicitária para a resolução desse tipo de problema, cujo ingrediente principal era a biotina.
O mistério estava explicado. Absorvida pelo corpo, a biotina não interfere no funcionamento da tireoide, mas bloqueia, no exame, as reações que detectam tanto o hormônio estimulador quanto o produzido por essa glândula. Hoje, as recomendações dos laboratórios contemplam o aviso para que o paciente interrompa o uso de biotina antes do exame de tireoide.
O médico responsável por esse tipo de investigação de resultados laboratoriais não compatíveis com a clínica é o Patologista Clínico. Atuando como uma espécie de detetive, atento aos indícios e juntando as pistas, ele foi capaz de solucionar esse caso. Assim como esse especialista, em tantas outras oportunidades, a Patologia Clínica se beneficia dessas habilidades investigativas para encontrar e trilhar o melhor caminho para o tratamento de uma doença. Mas, afinal de contas, o que faz o médico Patologista Clínico?
Se parece muito nítido para os estudantes de medicina ou mesmo para os leigos o que faz um pediatra ou um oftalmologista, é muito comum que paire, mesmo entre médicos formados e atuantes, uma certa dúvida sobre as atribuições do Patologista Clínico. Mais do que “detetives”, aqueles que optam pela residência em Patologia Clínica ganham uma casa: o laboratório.
É a partir de lá que serão feitos os exames em amostras clínicas, especialmente os líquidos corporais (sangue, urina, sêmen, líquido cefalorraquidiano, escarro e fezes), que são de responsabilidade do Patologista Clínico. Esse profissional pode trabalhar tanto em laboratórios clínicos como hospitalares ou ambulatoriais, atuando antes (fase pré-analítica), durante (fase analítica) e depois (fase pós-analítica) da realização dos exames.
Demarcamos aí uma primeira fronteira com outra especialidade, a anatomopatologia, responsável pela análise de tecidos. É função do anatomopatologista, por exemplo, a realização tanto de biópsias como de autópsias.
Entre essas duas áreas, a execução de exames citológicos, que avaliam células do corpo ou presentes em fluidos corporais na busca por indícios de inflamação, infecção, sangramentos ou de câncer, representa uma certa zona cinzenta entre essas duas especialidades. Visto por alguns como um território dos anatomopatologistas, um Patologista Clínico também pode realizar esse tipo de exame.
A existência de outra área de fronteira entre campos de atuação se deve ao fato de que, no Brasil, especialidades não médicas, como farmacêuticos, bioquímicos, biólogos e biomédicos, também são credenciadas para a realização de exames laboratoriais e o fazem com dedicação e competência.
Porém, é aí que encontramos o grande diferencial do médico Patologista Clínico e uma de suas mais importantes atribuições: aconselhar e orientar os colegas e pacientes que estão com dúvidas sobre os exames laboratoriais.
No diálogo entre profissionais de mesma formação, exames são sugeridos e interpretações de resultados mais desafiadores são discutidas. Da mesma forma, os profissionais médicos podem ser atualizados a respeito da chegada de novos tipos de exame ou de outros que, sabidamente, deixaram de ser empregados para aqueles casos em questão, sempre à luz do contexto clínico, com base no avanço tecnológico, nas evidências científicas, na relação custo-efetividade e no respeito aos princípios ético-legais da medicina.
Nessa dinâmica, cabe ao médico Patologista Clínico fazer uma ponte importantíssima entre os aspectos físicos, químicos, biológicos e clínicos da medicina. Tudo isso com um efeito multiplicador, já que médicos orientados pelos Patologistas Clínicos tendem a orientar os seus colegas.
Os Patologistas Clínicos compõem, dessa forma, um verdadeiro acervo estratégico e em constante evolução para a prevenção e diagnóstico de enfermidades, assim como para o monitoramento da condução de tratamentos e da saúde do paciente.
A visão de conjunto propiciada pela grande quantidade de casos analisados serve, nessa troca, de bússola, tanto para médicos experientes, como também e, especialmente, para aqueles que estão ingressando na área médica, sempre em constante renovação. Aliando dinamismo, flexibilidade, capacidade de observação e diálogo a certa dose de criatividade, se fizermos uma analogia com o mundo do futebol, podemos dizer que os Patologistas Clínicos são os meio--campistas da medicina.
Também cabe ao Patologista Clínico organizar, coordenar e controlar as atividades dos colaboradores do laboratório, assim como executar e implementar, nesses locais, procedimentos técnicos e administrativos, que englobam atividades de gestão, tecnologia da informação, gerenciamento de resíduos, além da coleta e transporte de amostras biológicas. O Patologista Clínico pode ainda atuar na produção, manutenção e calibração de equipamentos e nas áreas de bioestatística, bioinformática e genômica em diferentes graus de complexidade.
Fazendo uma ponte entre as ciências básicas e aplicadas, os Patologistas Clínicos são profissionais responsáveis por selecionar, desenvolver, avaliar e mesmo propor novas técnicas de diagnóstico e podem ainda realizar atividades de auditoria e acreditação de laboratórios, além de atuarem como docentes em instituições de ensino, pesquisa e extensão.
No Brasil, historicamente, a preocupação de autoridades com a realização de exames preventivos possui cerca de 100 anos e tem na figura do farmacêutico e médico, Geraldo Horácio de Paula Souza, o seu grande defensor.
Paula Souza foi nomeado diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, em 1925, e concebeu os Centros de Saúde, polos de ensino de boas práticas em saúde pública e de oferta de exames a serem realizados periodicamente por seus frequentadores. Infelizmente, problemas políticos e resistências no próprio meio médico impediram que tais centros fossem instalados na quantidade adequada. Mas o tempo se encarregou de dar razão à visão de Paula Souza.
É importante também que a população entenda que todo esse conhecimento está a seu serviço. Os processos de preparo e execução para um exame são rigorosamente concebidos para que, como vimos, possam ser obtidos os resultados mais precisos e confiáveis. Exames laboratoriais são os grandes aliados de tratamentos mais eficazes e menos invasivos, seguindo os preceitos de uma medicina preventiva.
Por outro lado, aos estudantes de medicina que ainda não decidiram sua especialização, fica o convite para que conheçam mais a respeito dessa área tão dinâmica e fascinante.