Por Iran Gonçalves Jr.

Quando somos submetidos a um exame físico ou realizamos um exame de laboratório ou de imagem, a primeira questão que vem na nossa mente é se o resultado foi normal.

Entendemos a palavra “normal” como antônimo de “anormal” e, se é “anormal”, deve ser doença.

Nos exames de laboratório, comparamos nosso resultado com os “Valores de Referência”, geralmente impressos à direita do nosso resultado. O laboratório onde o exame foi realizado, muitas vezes, imprime o resultado em uma cor diferente se o resultado está “fora da faixa” e já retornamos ao médico com a certeza de que estamos doentes.

Nos exames de imagem, cheios de palavras difíceis e expressões técnicas, sempre vem a dúvida “Dr., este achado aí no meu fígado, é normal?”

Médicos utilizam a palavra “normal” para descrever um conjunto de dados que, quando apresentados graficamente, formam uma figura que parece um sino, a curva normal.

Esta curva e suas propriedades foram descritas nos séculos XVIII e XIX pelos matemáticos Pierre–Simon Laplace e Carl Friedrich Gauss.

A distribuição dos valores na curva apresenta boa correlação com os fenômenos biológicos e médicos, permitindo estimar a porcentagem de indivíduos com cada valor da variável analisada.

Por exemplo, se obtivermos um grande número de medidas de altura de brasileiros, poderemos observar que 1,70m é a altura mais frequente na população masculina.

Essa medida estará no meio da curva, ela é a norma, o mais frequente, o esperado. Ao lado esquerdo da norma estarão as pessoas de altura menor que 1,70 e ao lado direito as pessoas de altura maior.

Quanto mais afastadas do centro, menos frequentes são as alturas observadas, é raro você deparar com um adulto de 1,30m ou de 2,10m no dia a dia. São valores de altura infrequentes, mas não são valores “anormais” no sentido de doença.

Os resultados obtidos no exame físico, nos exames de laboratório ou de imagem, devem ser analisados à luz destas variações. No mesmo indivíduo essas variações também acontecem, por isso podemos obter resultados diferentes em exames realizados em momentos distintos.

O que, então, define um resultado como definitivamente anormal?

A resposta é complexa. Uma das coisas que se leva em consideração é a chamada probabilidade pré-teste, por exemplo, uma alteração no eletrocardiograma de um idoso pode ser considerada esperada, sem significar doença, porque a chance desta alteração ser devido à idade é alta, a mesma alteração num jovem seria inesperada, portanto, pode significar anormalidade ou “doença”.

Valores esperados para sexo e idade de um exame são definidos por estudos clínicos com grande número de observações (estudos populacionais), muitas vezes durante anos ou décadas.

O Framingham Heart Study acompanha a saúde da população da pequena cidade de Framingham, vizinha a Boston, desde 1948, é um exemplo de estudo populacional longo e abrangente. Este estudo definiu os fatores de risco para o desenvolvimento de doença aterosclerótica cardíaca e cerebral, utilizados até hoje.

Os valores considerados “normais” podem ser alterados de tempos em tempos. Para isso ocorrer são necessárias novas evidências observacionais ou que uma nova terapia demonstre que um novo valor alcançado com sua utilização seja mais benéfico que o valor antigo.

Exemplo disso é a revisão, para valores menores, dos níveis de colesterol no sangue.

A inovação tecnológica representa um desafio constante, o exame de imagem ou laboratorial mais e mais sensível, capaz de “ver” o que a tecnologia de ontem não mostrava, não significa, necessariamente, diagnóstico mais precoce. Significa, muitas vezes, apenas variações do normal não visíveis anteriormente.

O custo financeiro da incorporação de novos medicamentos ou procedimentos também é um parâmetro de análise. A pergunta sobre o custo do que é o novo deve ser respondida objetivamente, afinal, não existe almoço grátis.

Neste ponto, amigo leitor, você deve estar se perguntando, quase desistindo do texto: “Por que estas informações deveriam me interessar?”.

Explico, um dos riscos atuais da medicina é que a literatura chama de  “overdiagnosis and overtreatment”, excesso de diagnóstico e tratamento em tradução literal ou diagnósticos incertos e tratamentos excessivos em uma interpretação mais abrangente.

O assunto é tão sério que em dezembro deste ano, na Australia, será realizada o 7º Conferência Mundial sobre ”Overdiagnosis and Overtreatment” ( http://www.preventingoverdiagnosis.net/).

Com novas tecnologias entrando no mercado cada vez mais rapidamente há o risco de que, por motivações mercadológicas, definições de um “novo normal” sejam apresentadas como evidência científica sólida quando ainda são conjecturas.

A publicidade dos novos equipamentos, medicamentos e suas indicações é feita diretamente para o público consumidor por intermédio de meios de comunicação de massa, induzindo a procedimentos, diagnósticos e tratamentos desnecessários.

Mapear o genoma, solicitar exames de imagem para procurar doenças escondidas, medicar indivíduos que são consideradas agitados porque o “novo normal” é diagnosticar e tratar precocemente transtornos de humor ou indicar medicamentos “preventivos” para todas as faixas etárias, sexo e etnias generalizando resultados de estudos menos abrangentes, são alguns exemplos de diagnósticos incertos e tratamentos excessivos.

Pessoas diagnosticadas com doenças que elas não têm, com base em exames cuja interpretação não leva em conta as circunstâncias descritas acima ou na sofreguidão de se fazer um diagnóstico precoce, sofrem com tratamentos desnecessários, novos exames solicitados para investigar os achados do primeiro exame, “necessidade” de acompanhamento para verificar a evolução da “doença”.

Conversar com seu médico sobre a indicação e a evidência que sustentam estes anúncios é a melhor forma de não ficar impressionado e inseguro com a publicidade direta.

Há um alto custo emocional envolvido em qualquer diagnóstico, além do pessoal, muitas vezes com filhos ou parentes idosos, e um óbvio custo financeiro.

Esta temática é, sem dúvida, antípoda daquela relacionada à escassez de recursos, porém, numa sociedade desigual como a nossa, os que vivem na afluência devem estar atentos, pois são as vítimas potenciais.